sexta-feira, 21 de março de 2008

João Pedro de Andrade: algumas possíveis notas

João Pedro de Andrade nasceu em Ponte de Sôr no ano de 1906, fruto de um casamento que gerou sete filhos. O escritor foi o mais novo dos descendentes da família Andrade.
Com a morte prematura do pai, a sua família muda-se para Lisboa, tinha, então, o jovem dez anos de idade. Na capital tem a oportunidade, ainda bastante novo, de trabalhar como paquete no jornal “O Século”, enquanto à noite estudava no curso comercial, que lhe permitiu vir a trabalhar em contabilidade.
Nas Letras, João Pedro de Andrade foi um autodidacta. A sua paixão por esta área, principalmente pelo teatro, levou-o a participar em algumas peças de teatro amador, entre eles o grupo de Araújo Pereira “Teatro Juvénia”. A sua ligação com o “Grupo Dramático da Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul”, permitiu-lhe trabalhar com grandes actores: Jacinto Ramos, Raul Solnado, Varela Silva. Esteve, também, ligado ao “Teatro Estúdio do Salitre” de Gino Saviotti, onde viu em cena as suas peças O Saudoso Extinto e Curva do Céu (1947) ou Antes de Começar (1949).
Relativamente ao “Teatro Estúdio de Salitre” é importante dizer que o seu aparecimento está associado a um “movimento” de renovação do teatro português, tendo por base todo um objectivo programático, que urgia implantar no cenário nacional: “encontrar de novo - nas palavras do texto, no jogo das cenas, nos gestos dos actores, nos agrupamentos, nas cores, nas luzes e na atmosfera cenográfica – o ritmo, o estilo, a poesia de representação”. Tendo-se a consciência de que era necessário libertar a dramaturgia nacional da hegemonia das escolas naturalistas e realistas, o Teatro do Salitre, inaugurado em Abril de 1946 e fundado por Gino Saviotti, traz para os palcos nacionais novos autores (Almada Negreiros; Branquinho da Fonseca e o “nosso” João Pedro de Andrade) e novos actores. A esta onda de renovação está associado João Pedro de Andrade, tendo algumas peças que escreveu- Continuação da Comédia e A Glória dos Césares-, fortes influências do dramaturgo italiano Pirandello, o que só revela um conhecimento actualizado e rigoroso do que se passava “fora de portas”, no contexto cultural internacional. Aliás, a Continuação da Comédia, peça pirandelliana, publicada em 1939 na revista Presença, foi escrita em 1931, ano em que Pirandello visita Portugal a convite de António Sérgio, para participar num congresso da “Associação Internacional de Crítica”. Esta peça subiu ao palco no ano de 1948, através do “Pátio das Comédias. (REBELLO, Luiz Francisco, História do Teatro Português, Publicações Europa-América, 1967) (REBELLO, Luiz Francisco, Prefácio in João Pedro de Andrade Teatro II, Acontecimento, 1999)
Aos 21 anos, portanto, por volta de 1923, o jovem dramaturgo volta ao Alentejo, instalando-se em Santiago do Cacém, onde veio a casar, em 1934, com Alda Gonçalves, professora primária, e com quem teve a filha Clélia. Em 1936, foi preso pela PIDE, por denúncia de infundada actividade política. Esteve em Lisboa e em 20 de Novembro de 1936 foi transferido para Peniche, onde esteve até Fevereiro de 1937, ano do nascimento da sua segunda filha, Sílvia. Em 1937, nasce o terceiro filho, Júlio Pedro, vindo a radicar-se, definitivamente, em Lisboa.
Veio a falecer a 12 de Fevereiro de 1974, não chegando a vislumbrar as luzes de liberdade que pouco depois viria a colorir todo o país e que lhe permitiria soltar-se dos agrilhões da censura que tanto tinham procurado limitar o seu trabalho literário, chegando algumas das suas peças (exemplo Maré Alta-1947 que apenas foi publicada no ano 2000) a ser censuradas. Aliás, o próprio refere na recensão crítica "d’A Forja" na Seara Nova (9 de Abril) “os excessos puritanos de certo organismo zelador dos bons costumes”, que impediam a publicação das peças que iam sendo escritas e que levavam ao empobrecimento das peças encenadas e zelavam pelo desinteresse do próprio público pelo teatro e autores portugueses.
Tendo escrito cerca de vinte peças, entre os anos de 1926 e 1936, algumas ainda permanecem inéditas, devido à instituição censura, que amedrontou o país e o afastou das grandes ideias e expressões culturais internacionais. Contudo, como refere a investigadora Maria Helena Serôdio, pior que a censura de certas partes do texto, era mesmo aquela que estava interiorizada “a ponto de constranger a própria criação ficional”. Razão, aliás, apontada como responsável pelo facto de os escritores neo-realistas, conscientes da importância que o teatro social tinha para a sua causa, não terem desenvolvido, particularmente, esta forma de expressão artística. (SERÔDIO, Maria Helena, “João Pedro de Andrade: alguns traços do seu universo dramático” in Vértice, nº 108, II série, 2002) (v. RODRIGUES, Graça Almeida, Breve História da censura literária em Portugal, Biblioteca Breve, ICLP, 1ª edição, 1980.)
A qualidade das suas peças, num período tão pobre de criação dramática, torna urgente publicar este autor e dá-lo a conhecer. Pois, como, já referia José Régio, em “Página Indiscreta-O Comediógrafo desconhecido”, artigo publicado na Presença, no ano de 1940, e que, aliás, foi escrito para chamar a atenção para “um autor ainda completamente desconhecido como dramaturgo” e que resulta do reconhecimento da sua importância para o teatro nacional, é, afinal, uma voz que procura garantir, dentro das suas próprias limitações, que a obra de João Pedro de Andrade não caia no olvido- panteão dos eternos desconhecidos e estigmatizados pela “natural censura” humana, aquela que garante a hegemonia de um gosto ou tendência estética sobre outras manifestações e pensamentos existentes. (RÉGIO, José, “Página Indiscreta- um comediógrafo desconhecido” in Presença, Tomo III, 2ª série, nº 2, 1940, pg.128/129).
O interesse que, desde muito cedo, João Pedro de Andrade demonstrou ter pelas Letras levou-o a construir um sólido conhecimento, que pôde explanar nas diversas colaborações que teve nos mais importantes periódicos nacionais da época: Sol Nascente, O Diabo, Seara Nova; Diário de Lisboa, Diário Popular e O Comércio do Porto. (V. DIAS, Luís Augusto Costa, A Imprensa Periódica na génese do neo-realismo, Museu do Neo-realismo, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1996). Foi também tradutor, principalmente de obras francesas (Madame Bovary, de Flaubert...)
João Pedro de Andrade foi um autodidacta das Letras, um “dramaturgo desconhecido”, nas palavras de José Régio; um crítico e um dos mais importantes teóricos do neo-realismo. Será, então, sobre a multiplicidade da sua produção criativa que me debruçarei, em seguida.

João Pedro de Andrade: “um dramaturgo desconhecido”

A produção dramática de João Pedro de Andrade teve início, se assim se poderá dizer, em 1926 com a peça, ainda inédita, A Ave Branca, findando em 1963, com o manuscrito incompleto Um País Glorioso.
Ora, estamos perante cerca de trinta e sete anos de escrita dramática, pela mão da qual nasceram algumas das melhores peças dos últimos anos e que vieram, de facto, enriquecer o cenário teatral nacional, silenciado e enfraquecido por anos de censura e de estímulo a um “teatro alegre”, previsível e estagnado na escolas realista e naturalista.
Luiz Francisco Rebello que o coloca entre os dramaturgos “modernistas” e “vanguardistas”, marca, aliás, os anos de 1931 e de 1948, como balizas de um período que irão destacar-se na extensa produção de JPA. Em 1931, é escrita a peça Continuação da Comédia- o primeiro sinal da presença de Pirandello no teatro escrito português- de cariz modernista, na introdução do onírico, do irreal, mas também algo experimentalista, na opinião de Maria Helena Serôdio. Ao ser publicada em 1939 na revista "Presença", João Pedro de Andrade ganha um novo protagonismo no panorama teatral nacional. José Régio felicita-o em carta pela qualidade das suas peças. Diz, então, “João Pedro de Andrade é sem dúvida uma vocação de dramaturgo. O seu diálogo logo me surpreende (...) pela rara qualidade de não ser vulgar nem empolado (...)” (RÉGIO, José, “Carta” In João Pedro de Andrade A Inimiga dos Homens / Eva e sua Filha, Acontecimento, 2000) . E, em “Página Indiscreta- um Comediógrafo desconhecido”, José Régio assume publicamente o interesse e a importância deste escritor, dedicando-lhe um artigo na Presença: “naturalidade e qualidade literária do diálogo, finura de observação psicológica, segurança dos recursos técnicos, interesse dos motivos”.
Na História do Teatro Português, Luiz Francisco Rebello afirma a ligação de João Pedro de Andrade à geração da Presença, contudo, segundo o investigador “a obra de João Pedro de Andrade introduz na dramaturgia modernista uma nota de crítica social, que nunca é programática, e sim humano protesto contra as imperfeições do mundo” (pg. 111).
Por seu lado, Duarte Ivo Cruz, considera que o grande contributo deste dramaturgo está “na inovação e originalidade da sua obra”, mais do que na qualidade da mesma e destaca-a como uma “obra densa, rica, una apesar da variedade, constituída em torno de núcleos polarizantes.” (CRUZ, Duarte Ivo, Introdução à História do Teatro Português, Guimarães Editores, 1983). E o que entende por núcleos polarizantes?
Para este crítico, todas as peças deste dramaturgo são construídas e desenvolvidas a partir de um conflito dialectal: verdade-erro; bem-mal; positivo-negativo, que lhes confere a sua razão de ser. Partilhando esta mesma ideia, penso poder acrescentar que este “conflito dialectal” resulta de uma obra que procura testar a natureza humana, nos seus mais diferentes contextos, possibilidades, de onde resulta mostrar em palco cenários dúbios, respostas indefinidas e improváveis, e personagens em constante descoberta de si próprias, num mundo que se altera e flui.
E é do violento encontro, ou melhor, do convívio inesperado das personagens com a sua dupla realidade, que o conhecimento se processa, que as existências paradoxalmente se compatibilizam. Vêmo-lo, por exemplo, em A Inimiga dos Homens, quando a Morte parece conseguir provar ao Médico que a felicidade, a vida, a alegria e a própria continuidade e sentido da existência humana estão intimamente ligadas ao sofrimento, à perda. Na peça Maré Alta, o conflito, sempre gerador de mudança e factor de aprendizagem, dá-se entre o bem e o mal, entre o certo e o errado. E é, apenas, quando João e Filipe se apercebem do mal que estão a fazer a Ana, que toda a sua visão do mundo se altera: Ana tem o direito de decidir a sua vida, facto que até então não lhe era reconhecido. E, já, em Barro Humano procura destruir-se a noção de “casal ideal”, “ser humano perfeito”, “mulher e maridos ideais”. O sacrifício do carácter idealista na peça, reflecte a noção de que a felicidade humana é, de facto, uma necessidade e que apenas se compadece com uma vivência plena da natureza humana.
Apesar de contraditório e até, paradoxal, é a partir deste “conflito dialectal”, de que fala Duarte Ivo Cruz, que é permitido às personagens serem realmente livres e serem elas próprias, de onde resulta uma mensagem de tolerância, de encontro entre formas de viver incompatíveis, e de esperança da obra deste dramaturgo.
Maria Helena Seródio, no artigo publicado na revista Vértice vem acrescentar um “certo experimentalismo”, que não entra em contradição com um dos principais vectores da sua obra: a observação do humano, na suas contradições. É pela vida que a acção se decide. Ideia que se encontra implícita na carta de José Régio dirigida a João Pedro de Andrade: “um saber de experiências feito”. (Régio, José, “Carta”,in João Pedro de Andrade, A Inimiga dos Homens/ Eva e sua Filha, Acontecimento, 2000)
Mas dizia, outro dos grandes motivos da obra deste autor, aqui ainda não referido, e que a investigadora refere no seu artigo, “é a questão do feminino, que aflorando na Continuação da Comédia, acaba por percorrer quase toda a dramaturgia.”, e que o leva a interrogar “a fórmula dramática “tradicional”: o enquadramento da mulher/personagem deixou de reflectir o seu real papel na sociedade, “e esta preocupação [do dramaturgo] é, a meu ver, composicional e existencial”. E não é de admirar que haja um maior número de personagens femininas na obra de João Pedro de Andrade e que elas sejam as protagonistas de muitas das peças deste dramaturgo e das suas próprias vidas (Quatro Ventos; Maré Alta, Barro Humano, Eva e sua Filha; O Lobo e o Homem)
Tendo quase 40 anos de escrita dramática, aqui ficam todas as suas peças, cronologicamente apresentadas:

1926-27- A ave branca-inédita
1928-Cegos (I acto)
1929- A Outra face da vida (I acto) inédita
1931-Continuação da Comédia (I acto), publicada em 1939 na Presença
1930-33- Eva e sua filha (publicada em 2000)
1926-33- A Glória dos Césares (inédita)
1934- Transviados (3 actos) publicada em 1941
1935- Adolescente (I acto) inédita
1935-O saudoso extinto ( I acto) publicada em 1945
1937- Uma só vez na Vida (3 actos) publicada em 1941
1945- Quatro Ventos (3 actos)- publicada em 1998
1925-47- O Lobo e o Homem (3 actos) inédita
1947- Barro Humano (3 actos) publicada em 1999
1947- Maré Alta (I acto) publicada em 1998
1948- A Inimiga dos Homens (I acto) publicada em 2000
1950- O diabo e o frade (3 actos) publicada em 1963
1951- Os que hão-de vir (I acto) inédita
1951- A aventura de um grande actor (inédita)
1957- Vida transitória (manuscrito incomleto)
1963- Um país glorioso (manuscrito incompleto)

João Pedro de Andrade e o Neo-realismo

Ernesto Rodrigues, na introdução que faz a Ambições e Limites do Neo-realismo, o qual reúne os ensaios e os textos de JPA, dispersos por jornais e revistas, situa este escritor, no domínio da crítica como “imune a pressões do meio ou a ares do tempo”.
Originalidade e independência de ideias que se reflectem em toda a sua obra, pois se enquanto crítico estamos perante um dos grandes teóricos do neo-realismo português; quanto à restante produção criativa estamos perante um modernista, com fortes raízes na geração da Presença. O que, à partida, parecia incompatível, devido até às contradições e conflitos existentes entre os dois movimentos, torna-se em João Pedro de Andrade factor de originalidade.
Contudo, para que não se criem equívocos, há que esclarecer que numa primeira fase participaram na revista Presença poetas ligados à poesia social, mas também ao próprio neo-realismo, como são os nomes de Fernando Namora, João José Cochofel, Mário Dionísio, Joaquim Namorado entre outros. Convivência que se antagoniza por volta de 1935, com desentendimentos entre José Régio e uma nova geração de colaboradores.[1]
Carlos Reis em O Discurso Ideológico do Neo-realismo português reflecte sobre a autoridade de JPA no domínio da teorização, argumentando-a com base em duas razões:” em primeiro lugar, pelo facto de se tratar de um autor sempre dotado de um conhecimento muito actualizado da criação romanesca neo-realista, o qual se evidencia na regularidade da sua actividade crítica, ao longo da década de 40; em segundo lugar, porque, não podendo ser encarado como um autor directamente envolvido na produção literária neo-realista, João Pedro de Andrade constitui uma voz insuspeita para formular juízos sobre um movimento com que, no entanto, de um modo geral, se identificava”.
Defendendo João Pedro de Andrade uma ficção com fortes ligações ao mundo, considera que aos escritores, observadores privilegiados do “espectáculo do mundo”, cabe encarar a literatura como um “reflexo deformado” e uma “projecção ampliada” da realidade e nunca a própria realidade. Entende, que o escritor, tem como que uma “obrigação consciente e voluntária” de estar atento às grandes transformações do mundo, às convulsões sociais que se avizinham, às questões e dilemas internos que se levantam e de o transmitir através da sua sensibilidade: “Ora, quando um grande acontecimento se aproxima, quando uma guerra ou uma revolução se adivinha a distância, os pensamentos andam em sobressalto, os princípios da orgânica social estremecem na engrenagem que os suporta, conceitos morais que julgáramos eternos caem de caducos, e outros mais ousados se colocam em seu lugar. De tudo isto resulta uma modificação nos hábitos e uma tensão nos espíritos, que não podem passar despercebidas ao observador que todo o romancista tem de ser...” (ANDRADE, João Pedro, in Carlos Reis Textos teóricos do Neo-realismo Português, vol. 19, Comunicação, 1981.)
Consciente das grandes transformações que ocorriam no mundo, JPA reconhece a urgência em se criar “uma consciência nova”, assente numa sólida afirmação estética do movimento face às escolas e movimentos anteriores, e, para isso o neo-realismo não deverá apenas ficar pelos motivos que lhes são conhecidos: exposição das grandes desigualdades sociais: “Nem só a miséria ou as desigualdades sociais deverão fornecer motivos para a literatura neo-realista”. Pelo contrário, deve, sim e também, “descrever e criticar os quadros dos grupos superados, alicerçar em bases sólidas as aspirações de que a nova literatura será arauto” (O Diabo, 1940). Ou seja, o teórico João Pedro de Andrade afirma com estas palavras a necessidade do neo-realismo se afirmar como movimento oponente ao modernismo, mas assente numa estética própria e sólida e num programa que o garanta e o legitime.
Nas directrizes que João Pedro de Andrade procura traçar para o neo-realismo refere que “uma literatura social que se desenvolva normalmente afirma-se pela explanação serena dos problemas e das contradições sociais, progredindo no sentido de abranger e aprofundar mais tais problemas e contradições, que não estão apenas no campo económico”. Ora esta declaração parece-me ser relevante para o entendimento da sua obra e permite traçar as ligações que ela possa ter com o neo-realismo, ou não.
Como muito bem salientou Maria Helena Serôdio “a visão da mulher na nova dimensão existencial que João Pedro de Andrade lhe consigna é, para mim, um dos pólos estruturantes do seu universo ficcional”. Isto é, constata-se que, de facto, a problemática da mudança do papel social da mulher é uma temática constante e, se no teatro “tradicional” elas eram as aias, ou amas, as empregadas, ou a mulher casada subjugada às vontades de um mundo viril, com João Pedro de Andrade elas são o motor de mudança social, as suas protagonistas. Umas vezes em luta com os valores antigos e obsoletos de uma sociedade que as castra e estigmatiza, outras interrogando as possibilidade de realização como mulher que o mundo lhe apresenta, ela questiona e questiona-se, recusa, avança e recua, diz que sim e é caprichosa no seu direito a existir e a decidir o seu destino. Neste “conflito dialectal”, para usar uma expressão de Duarte Ivo Cruz, há o confronto entre o forte e fraco, o opressor e o oprimido, como se de uma luta de classes, que de facto o é, se tratasse: a mulher até então oprimida e enfraquecida enfrenta o homem de sempre e à sociedade que este criou à sua imagem e semelhança, ignorando que ela também deverá comportar uma dimensão feminina.
Recordo a personagem Elina d’A continuação da Comédia: “Elina é, de certo modo, a mulher, mas a mulher de hoje, que começa a penetrar-se na instrução que, assimilando mal os ensinamentos que recebe, sai da esfera de acção que lhe estava naturalmente traçada, e desvaira-se e delira. Cláudio é um homem, um homem que é assim, como podia ser de outro modo (...) Cláudio é de hoje, mas podia ser contemporâneo de Sócrates. Elina é essencialmente dos nossos dias” (ANDRADE, João Pedro de, A Continuação da Comédia, Acontecimento).
Perspectiva que se encontra em sintonia com outras peças da sua autoria, de que é exemplo Maré Alta. Ana quando escolhe um dos dois homens com quem ficar está a alterar a própria ordem das coisas, do mundo, e consegue, ela própria, transformar a forma de pensar dos dois personagens masculinos. A partir da sua decisão, que advém afinal do direito a decidir, o mundo assume novo sentido. O mesmo ocorre em Quatro Ventos ,que mais não são do que quatro possibilidades de vida que eram permitidas e previstas à mulher: casar; ficar solteira; ser amante; e viver sob os desígnios da família. Maria do Céu não acolhe na sua vida qualquer um destes ventos e decide ser ela a decidir a sua vida, porque agora, os ventos são de mudança.
E são elas que vão fazer a sua revolta, contra o homem e os seus valores obsoletos e velhos, tão velhos quanto o mundo e uma sociedade que as exclue. São elas que vão ser as grandes responsáveis pela maior transformação social que o mundo registou. É ao transformar-se o papel social da mulher, é a própria sociedade que se altera, porque elas vão ser as protagonistas de novos conceitos de família e de vivência familiar, de educação, de sexualidade feminina, de igualdade, fraternidade, até, então, estranhos no panorama nacional.
É, neste sentido, que falo de uma obra neo-realista. João Pedro de Andrade como observador privilegiado das grandes transformações sociais, a elas não ficou alheio transportando-as, subtilmente, para os palcos nacionais.



Bibliografia activa:

Teatro:
-Maré Alta/Quatro Ventos (Teatro Vol. I) (869.0-2 AND)

-Continuação da Comédia/ “Barro Humano” (Teatro Vol II) (prefácio de Luiz Francisco Rebello) (869.0-2 AND)

-A Inimiga dos Homens (Vol III) (Teatro Vol III) (ver carta de José Régio a JPA. Escreveu também na “Presença”) (869.0-2 AND)

-A glória dos Césares/O lobo e o homem (Teatro Vol. IV) (prefácio de Duarte Ivo Cruz) (869.0-2 AND)

Ensaio:

-Ambições e Limites do Neo-realismo português, Introdução de Ernesto Rodrigues e edição de Joana Marques de Almeida, ed. Acontecimento, Lisboa 2002.

-A Poesia da Novíssima Geração (génese de uma atitude poética), Porto, Latina Editora, 1943.

-“Arrumação duma ficha”. Seara Nova, Lx, nº 834, 7/8/43, e 836, 21/8/43. (polémica com Mário Dionísio)

-“Intenções e realizações da Presença na prosa de ficção”. O Comércio do Porto, Suplemento “Cultura e Arte”, 24/4/%&, Porto editora.

Antologia:
-ANDRADE, João Pedro de, Os melhores contos portugueses, Antologias Universais, Portugália editora, (869.0-3 MEL)

Colaborações:
ANDRADE, João Pedro de, “Neo-realismo” e “Novo Cancioneiro”, in Jacinto do Prado Coelho, Dicionário de Literatura Portuguesa, Galega e Brasileira, 3ª edição, Porto, Livraria Figueirinhas; 1973, 2º vol. (82 (030.DIC) I/II.

ANDRADE, João Pedro de, “Contingências da Poesia”, in Cadernos de Poesia, I série

ANDRADE, João Pedro de, “Continuação da Comédia”, in Presença, Contexto, Tomo III, 1993 (edição fac-similada).(consulta local-BMSC)

ANDRADE, João Pedro, “O problema do romance português contemporâneo”, in Seara Nova (1942).

[-ATENÇÂO:São conhecidas colaborações em diversos jornais e revistas, entre eles a revista Seara Nova, na década de 40; Diário de Lisboa, entre os anos de 1946 e 1947; Comércio do Porto; Diário Popular; e o semanário O Diabo, entre 1939 e 1940.]

Bibliografia passiva:

CRUZ, Duarte Ivo, “Prefácio”, in João Pedro de Andrade Teatro IV- A Glória dos Césares/O lobo e o Homem, Acontecimento, 2002. (869.0-2 AND)

CRUZ, Duarte Ivo, “João Pedro de Andrade” in Introdução à História do Teatro Português”, Guimarães editores, 1983 (792 (091)CRU)

DIAS, Raul, João Pedro de Andrade (algumas notas bio-bibliográficas e antológicas), Câmara Municipal de Ponte de Sôr, 1993

_________“Dicionário Cronológico de Autores Portugueses”, Vol IV, IPLB, Publicações Europa-América. (consulta local-BMSC)

FRANÇA, José Augusto, Antologia de Inéditos de autores portugueses contemporâneos, Lisboa, Fevereiro de 1955, pg. 51-60)

REBELLO, Luiz Francisco, “Prefacio”, in João Pereira de Andrade, Teatro II Continuação da Comédia/ Barro Humano, Lisboa, Acontecimento, 1999. (869.0-2 AND)

REBELLO, Luiz Francisco, 100 anos de teatro português, Porto: Brasília editora, 1984, p.40.

REBELLO, Luiz Francisco, História do Teatro Português, Publicações Europa-América, 1976. (792 (091) REB)

RÉGIO, José, “Carta a João Pedro de Andrade”, in João Pedro de Andrade, Teatro III- A inimiga dos Homens/ Eva e a sua filha, Acontecimento, 2000. (869.0-2 AND)

RÉGIO, José, “Duas peças de João Pedro de Andrade”, in João Pedro de Andrade, Teatro (I-Transviados; II- Uma só vez na vida), Lisboa, 1941, pg. 261.

RÉGIO, José, “Página Indiscreta-um comediógrafo desconhecido” in Presença, nº 2, série II, ano XII, Fevereiro de 1940. (consulta local)

REIS, Carlos, O discurso ideológico do neo-realismo português, Coimbra, Livraria Almedina, pág. 117

Idem, Textos teóricos do neo-realismo português, João Pedro de Andrade, (p. 178-175) e (207-212) (consulta local)

ROCHA, Clara, Revistas Literárias do Século XX em Portugal, 1985, p.474
SERÔDIO, Maria Helena ,“João Pedro de Andrade: Alguns traços do seu universo dramático”, in Vértice, II série, nº 108 Novembro-Dezembro de 2002. (secção revistas-BMSC)
1. Aliás, as discórdias de pontos de vista, estendem-se aos próprios elementos fundadores da revista Presença, que acabam por se afastar deste movimento, que cultiva a arte pela arte, alheada das grandes transformações do mundo. São eles, Miguel Torga, Branquinho da Fonseca.
Atacada pelo jornal Diabo e Sol Nascente e por toda a jovem geração que proclamava o primado do “indivíduo social” sobre o “subjectivismo” e “individualismo” dos presencistas, a revista Presença termina em 1940, um ano antes da publicação do Novo Cancioneiro, .como indica Clara Rocha em As revistas Modernistas –do Orpheu à Presença.

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